Essa belíssima crônica escrita pelo Professor e Historiador Joaquim Dias é um convite a reflexão de pensamento. Vale a pena tirar alguns minutos e lê-la até o fim. Boa leitura!
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O que me motivou a escrever esta breve crônica é a percepção, já de algum tempo, de certa pobreza intelectual e argumentativa nas discussões que se desenrolam nas redes sociais, notadamente no Facebook. Longe de ser uma exclusividade do nosso município, nesses tempos de extremismos políticos e pouco debate de qualidade, este fenômeno é resultado indireto da universalização do acesso à informação. Não que sejamos contrários ao processo, mas é inegável concluir que nem todos que se expressam na internet o fazem dentro dos limites mínimos da coerência e da lógica, isso sem falar da patente falta de informação em alguns casos. E isso não está relacionado ao nível social e intelectual de quem se expressa. Há formadores de opinião e influenciadores com um suposto letramento que cometem desonestidades intelectuais de forma bem explícita, fazendo uso constante da demagogia no discurso e na argumentação. Bem como, pessoas mais humildes que procuram ser verdadeiras em suas expressões, reconhecendo seus limites e procurando saber mais de determinados assuntos.
Entretanto, o que vem a ser uma falácia, a qual o titulo se refere? Falácia é um raciocínio errado com aparência de verdadeiro. Não é uma simples mentira que se possa detectar de imediato. A falácia sempre tem algum tipo de validade (psicológica, emocional, social), mas não tem validade lógica, veracidade. A falácia confunde, ela tem o objetivo de descartar um argumento ou dado num debate, ou reforçar outro, quase sempre com o propósito de persuadir alguém a uma idéia ou causa. Ela pode ser mais ou menos sutil, às vezes mais manifesta às vezes quase indetectável.
Algumas falácias são involuntárias, no sentido de quem as profere não tem a intenção de manipular a verdade, mas é algo que decorre da falta de habilidade em encadear logicamente o pensamento. Outras falácias são intencionais, viciadas, feitas com o propósito de conduzir um debate a uma conclusão que o falacioso deseja. Observamos este comportamento com freqüência nas redes sociais.
Há mais de duzentos tipos de falácias, todavia, algumas são bem mais freqüentes e comuns. Colocamo-nos na intenção de apontar algumas que percebemos de forma mais destacada nos discursos de redes sociais. E, sinceramente, embora possamos reconhecer essas falácias universalmente, e não somente nas redes sociais, pensamos ao escrever esta crônica na nossa comunidade e nos interlocutores (não todos) que se manifestam sobre os problemas e questões cotidianas do município.
Vamos adiante, portanto, enumerando as falácias mais comuns nos textões e comentários de internet.
Falácia do Espantalho
Quando se desvirtua um argumento para torná-lo mais fácil de atacar. Ou seja, você distorce o que o seu interlocutor falou.
Exemplo: Alex reclama do estado da sua rua, pois com a última chuva não conseguiu sair de casa para levar os filhos à escola. Bernardo ataca Alex, afirmando que ele “é contra o Capão do Leão” e não quer ver as coisas melhorarem e só sabe criticar os outros.
Vejamos bem o problema da colocação de Bernardo. Ele censura a reclamação de Alex lhe conferindo uma intenção prévia – que é a de supostamente criticar pelo prazer de criticar, ou ainda, por estar hipoteticamente ligado a um conjunto de “insatisfeitos” que tem outras intenções na crítica. Talvez Alex apenas proferiu uma reclamação de momento, legítima, emocional e sincera, e até espere que o problema se resolva. Ou mesmo, não tinha nenhum outro propósito a não ser mesmo o de expressar sua insatisfação.
Ad Hominem
Você ataca o caráter ou traços pessoais do seu interlocutor em vez de refutar o argumento ou idéias dele.
Exemplo: Carlos reclama que precisou do atendimento de saúde para sua mãe idosa e foi mal atendido. Daniel pergunta se devem acreditar num sujeito que tem tendências homossexuais e, em seu passado, teve problemas com alcoolismo.
Essa é uma das falácias mais comuns. Você desacredita o que o interlocutor fala, sem verificar se aquilo que ele está falando é real e verdadeiro. Antes, você confere a ele a total impossibilidade de se manifestar por causa de uma característica sua. Ou seja, Daniel ao invés de provar que o atendimento de saúde é eficiente e Carlos está plenamente equivocado, ou ainda, que de repente, o que aconteceu à mãe de Carlos foi um problema pontual e não corresponde à maioria dos atendimentos que são realizados, o que tenta ser colocado em evidência é que Carlos não tem o direito de reclamar por causa de si mesmo. É conferido uma indignidade prévia (preconceito) ao fato de Carlos apresentar tendências homossexuais – o que não tem nenhum vínculo com aquilo que se está falando ou com a realidade. Além do mais, o problema do alcoolismo pretérito não tem relação direta com sua reclamação, pois se deve perguntar é se Carlos tornou-se menos capaz de reclamar por causa disso.
Tu quoque
A expressão em latim pode ser traduzida como “você também”. Quando se evita ter que responder críticas, trazendo críticas contra o interlocutor.
Exemplo: Elisângela criticou Fernanda por esta ter lhe prestado um péssimo atendimento em seu salão de beleza. Elisângela reclama do estado posterior de seu cabelo e da falta de atenção de Fernanda enquanto profissional. Fernanda não responde a acusação de Elisângela e insinua que sua cliente não é fiel ao marido, sendo falada em todo o bairro por causa disso.
A falácia pode ser suficientemente tola para ser considerada, mas ela existe de forma muito sutil nos discursos. Aparentemente, Fernanda estaria se defendendo da acusação de Elisângela apontando sua suposta hipocrisia. A questão a ser percebida é o se o objeto da reclamação de Elisângela – o mau atendimento no salão de beleza – tem relação com a acusação de sua oponente, Fernanda – o fato da reclamante ser supostamente infiel. Ou seja, a relação é nenhuma! Hipocrisia seria construída se, por exemplo, Elisângela acusasse Fernanda de não ter o hábito de escovar os dentes, sendo que a primeira notoriamente é conhecida por não gostar de tomar banho.
O problema da falácia “tu quoque” é que ela é usada na maior parte das vezes como uma estratégia para ganho de tempo ou para esvaziar um debate. Isto é, eu retiro o foco de cima de mim e jogo a atenção sobre aquele que demonstra o meu problema ou erro. Ao invés de contra-argumentar logicamente, defendendo os próprios procedimentos, condutas e idéias.
Alegação especial
Você altera as regras ou abre uma exceção quando sua afirmação é exposta como falsa.
Exemplo: Gilberto joga lixo num terreno baldio próximo à sua casa e faz isso há muito tempo. Hugo alerta o vizinho que o caminhão da coleta já está passando na rua há mais de seis meses. Gilberto contra-argumenta que ninguém nunca lhe avisou nada. Hugo responde que isso foi noticiado na rádio, na internet e por meio de panfletos distribuídos nas casas. Gilberto não se dá por vencido e sustenta que ninguém sabe quando o caminhão do lixo vai passar durante a semana. Hugo retifica que a coleta é feita sempre às segundas e quintas pela manhã. Teimoso, Gilberto disse que sempre colocou o lixo ali e ninguém vai reclamar, pois é um terreno tomado pelo mato e nunca ninguém se importou em limpá-lo.
Ninguém é infalível e tem receita para tudo – acreditamos que esta é uma verdade aceita por uma grande maioria de opiniões. Ao longo da vida, podemos mudar de idéias, reconhecer equívocos, ter novas visões sobre determinados assuntos, em suma, evoluir intelectualmente. Todavia, para que determinadas posições ou condutas permaneçam validadas para proveito próprio (ou pela incapacidade de se desconectar delas), algumas opiniões abusam da chamada pós-racionalização. Isto é, mesmo que a minha idéia seja evidenciada como errada, eu uso de artifícios e explicações para que ela seja moldada e aceita como correta. Para que todos entendam: o famoso “passar pano”.
Este tipo de atitude é muito comum nas relações políticas. O que era errado para o outro, tornou-se certo para mim, porque para mim, a mesma situação apresenta-se de “maneira especial”, digna de exceção. Da mesma forma, que um sujeito utiliza da falácia da alegação especial para proveito próprio, ele também pode usar para demérito de outrem.
Apelo à autoridade
Você usa sua posição como figura de autoridade ou pertencente a uma instituição de autoridade no lugar de um argumento verdadeiro. A famosa “carteirada”.
Exemplo: Inês foi procurar vaga para sua filha na escola do bairro. Constatando que a escola havia recentemente sido ampliada, ela acredita que não terá problema em conseguir o que deseja. Todavia, Joana, a diretora da escola, afirma que não tem vaga para criança nenhuma e que Inês vá procurar matricular a criança numa outra escola. Inês procura entender a situação e pergunta o porquê da situação. Joana se recusa a respondê-la e diz que não deve explicações, pois é uma professora com mais de 20 anos de experiência e possui doutorado na área e Inês não tem capacidade para lhe argüir nada.
O exemplo, por mais esdrúxulo que possa parecer, ilustra bem uma grande diversidade de casos que se assiste cotidianamente na sociedade e que convergem para o mesmo tipo de falácia: o apelo à autoridade. O raciocínio é o seguinte: a minha idéia ou afirmação é verdadeira por que eu estou numa posição de autoridade em relação aquele que me interroga ou debate. Isto é, quem me interroga ou debate comigo previamente está impossibilitado de assim o fazê-lo por que se encontra numa posição inferior à minha.
A questão que deve ser percebida é a seguinte: nenhuma autoridade é infalível, mesmo sobre a área ou assunto em que ela detém essa autoridade. A autoridade é reforçada por si mesma, quando ela se propõe por meios lógicos e racionais a explicar suas posições ou idéias. Em suma, o que tornaria a orientação de Joana aceitável para Inês seria que fosse demonstrado à pobre mãe que a escola estava com superlotação, que a Secretaria de Educação aumentou o espaço físico do educandário, mas diminuiu o número de profissionais, etc. Todavia, quase sempre não é assim. E não é assim, porque em 90% dos casos a falácia do apelo à autoridade é usada para mascarar uma realidade ou para se evitar que uma determinada situação seja exposta, revelando assim um erro ou procedimento incorreto.
Falácia do Preto ou Branco
Você apresenta dois estados alternativos e opostos como sendo as únicas possibilidades, sendo que de fato existem muitas outras. O famoso “oito ou oitenta”.
Exemplo: As ruas do bairro Primavera finalmente serão calçadas, após muita luta da comunidade e dos agentes públicos. O vereador Laércio, em seu discurso na Câmara, afirma que a verba orçada vai servir para asfaltar completamente o bairro. Maurício, o líder comunitário do bairro Primavera, salienta que o asfalto colocado puro pode não se assentar bem sobre o tipo de solo das ruas e sugere a colocação de paralelepípedos – mais baratos e duráveis. Já Oscar, o outro vereador que representa o bairro, também defende a colocação de blocos de unistein. Nicanor, o engenheiro-chefe da Prefeitura, entra também na discussão e afirma que é necessário fazer um estudo prévio para saber qual o material mais indicado para aquele tipo de solo. Laércio, ao invés de ponderar todas as possibilidades, continua defendendo o asfalto e faz um discurso emocionado, com forte apelo popular, salientando que existem aqueles que são a favor do progresso do bairro e aqueles que são sempre contra tudo e não querem o calçamento. A sessão acaba e ninguém se entende. No outro dia, pelas ruas do bairro Primavera, o líder comunitário Maurício, o vereador Oscar e o engenheiro Nicanor são pessoas vistas como inimigas e hostilizadas a cada esquina.
Isso acontece com freqüência e de diversas formas e múltiplos lugares. Diante de várias possibilidades, acaba imperando aquele pensamento binário do “positivo ou negativo”, “ou está com a gente ou é contra a gente”, etc. Não se consideram as variáveis e contextos próprios de uma situação. E boa parte das ocasiões o uso desse binarismo serve para propósitos não tão nobres.
Bônus: o conto da causa nobre
Não é propriamente uma falácia, mas um desvio lógico. Quando você elenca uma causa única e importante dentro de um conjunto de outras causas. Isso não é feita por escolha puramente moral, mas com o intuito de desmerecer outras causas ou lutas.
Exemplo: Patrícia e Olívia recolhem animais de rua, dão-lhes abrigo e tratamento e tentam encaminhá-los à adoção. Já Quirino é um biólogo preocupado com a situação dos rios e nascentes da cidade, enquanto Ricardo tem um projeto de arte com crianças carentes. Susana considera Patrícia, Olívia, Quirino e Ricardo pessoas alienadas e pouco úteis à cidade, visto que o problema da miséria na periferia é mais urgente e necessário de se combater.
O problema do conto da causa nobre é que, ao considerar uma causa mais importante que outras, ela não percebe aquilo que é feito por outras frentes sociais em sua essência. Isto é, não estabelece uma conexão entre as coisas. Muito provavelmente o trabalho de Patrícia e Olívia tem uma grande relevância naquela sociedade, pois diminui consideravelmente o número de animais de rua, animais estes que também são vetores de doenças e pragas justamente para a população mais pobre da periferia. Bem como os esforços de Quirino tentam garantir a qualidade de água potável para toda a população e um meio ambiente saudável naquela região. E o projeto de Ricardo, embora não seja visto como uma ação direta de combate à miséria, contribui para a formação moral e intelectual das crianças, abrindo-lhes horizontes e possibilidades.
Conclusão
Há muitos outros tipos de falácias usadas nos discursos, listamos aqui aqueles que nos parecem mais identificáveis. O lamentável disso tudo é que elas empobrecem o debate sadio e servem para emburrecer ainda mais uma opinião pública que, ao invés de construir suas próprias idéias e conceitos de forma racional e lógica, deixa-se levar por discursos fáceis e sedutores.
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